- O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, participou de um debate no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inclusão de conteúdos de gênero e orientação sexual nas escolas públicas.
- Durante sua fala, ele citou exemplos bíblicos, como as vidas de Moisés e Abraão, para defender a pluralidade dos arranjos familiares.
- Críticos apontam que a utilização de narrativas bíblicas está descontextualizada e não serve como base para validação jurídica.
- A interpretação de Dino é vista como uma tentativa de legitimar uma agenda política sob a justificativa de isonomia religiosa, o que contraria o princípio da laicidade do Estado.
- A inclusão de referências bíblicas no debate jurídico é considerada uma forma de instrumentalizar a religião, desviando o foco das fundamentações legais.
por Luiz Cesar Pimentel
A recente participação do ministro Flávio Dino no Supremo Tribunal Federal (STF), durante o debate sobre a inclusão de conteúdos de gênero e orientação sexual em escolas públicas, levanta um questionamento importante sobre o uso e a interpretação de textos sagrados no ambiente jurídico e político, especialmente em um Estado constitucionalmente laico. Ao citar exemplos bíblicos, como as vidas de Moisés e Abraão, para defender a pluralidade dos arranjos familiares e confrontar a ideia de um único modelo tradicional, o ministro incorreu em interpretações teológicas e históricas que merecem ser analisadas. O risco é que essa retórica mascare uma tentativa de legitimar uma agenda sob o pretexto de isonomia religiosa ou conhecimento bíblico, distorcendo o princípio fundamental da laicidade.
O principal ponto de crítica à argumentação do ministro reside na descontextualização das narrativas bíblicas. As Escrituras Sagradas não são um manual de modelos familiares para validação jurídica, mas sim um registro histórico-teológico da relação de Deus com a humanidade, que inclui as falhas e as contingências culturais da época.
Citar Moisés como “filho adotivo” para endossar a pluralidade familiar é um exemplo claro dessa descontextualização. A adoção de Moisés pela filha do Faraó é uma intervenção divina, um evento crucial para a História de Israel, e não uma defesa teológica de um arranjo familiar não biológico. Embora a Bíblia não condene a adoção, ela não a apresenta como o modelo preferencial em seus preceitos centrais sobre a família.
Já a menção a Abraão (Sara, Agar, Israel e Ismael) como exemplo de “estrutura familiar múltipla” – citando poligamia ou concubinato (Agar e Sara) – é falha na tentativa de provar a diversidade. Tais episódios, no contexto bíblico, são frequentemente retratados como fontes de grande sofrimento, conflito e falhas humanas (como o adultério de Abraão e a posterior expulsão de Agar e Ismael), e não como ideais a serem seguidos. A multiplicidade familiar de Abraão é uma contingência cultural e uma imperfeição, não a norma divina defendida.
O ponto mais problemático é a menção de que “Sara é compelida a ter uma relação afetiva com o Faraó”. Este evento relata a covardia de Abraão e sua falha em proteger Sara por medo, e não um endosso a qualquer tipo de arranjo relacional. O texto bíblico sugere que isso foi um risco de violação e desonra evitado por uma intervenção divina, e não um “arranjo familiar”.
Ao ignorar o contexto normativo e teológico da Bíblia, o ministro adota uma interpretação enviesada, transformando erros humanos e circunstâncias históricas em supostos fundamentos para a relativização da família.
Flávio Dino, sendo católico, certamente está ciente do peso simbólico da Bíblia na cultura brasileira. O uso público e eloquente de citações bíblicas em um debate de alto teor moral e legal serve a um duplo propósito que, ironicamente, fragiliza o princípio que ele supostamente defende: a laicidade do Estado.
Em primeiro lugar, a argumentação de Dino sugere, sutilmente, que sua pauta é compatível, senão validada, pelas próprias Escrituras Sagradas. A mensagem implícita é: “Mesmo se você for religioso, a Bíblia apoia minha visão”. Esta é uma tática para neutralizar a oposição teológica, buscando impor um consenso jurídico sob uma aparência de “isonomia religiosa” ou de “conhecimento bíblico superior”.
Contudo, um Estado laico deve fundamentar suas decisões unicamente na Constituição e no Direito, e não na interpretação, correta ou incorreta, de um texto sagrado. A tentativa de provar que a Bíblia “respalda a opção constitucional pátria” desvia o foco do fundamento estritamente legal para um fundamento teológico-retórico.
Em suma, a inclusão de referências bíblicas no plenário não serviu para fortalecer o Estado laico, mas sim para instrumentalizar a religião, trazendo a fé para o centro do debate jurídico como mera ferramenta retórica para validar uma agenda política. A laicidade exige que a Lei seja suficiente em si mesma, sem precisar buscar um “respaldo” em Moisés ou Abraão para justificar suas opções. A pluralidade familiar deve ser defendida pela Constituição e pelo Direito, e não pela distorção do cânone religioso.